Nunca tinha pensado sobre a hipótese.
Lei seca não poupa nem Exu
Médium abordado pela PM não escapa do bafômetro.
Não são apenas os fãs do happy hour que terão de mudar seus
hábitos com a nova Lei de trânsito, que proíbe o consumo de álcool pelos
motoristas. Os adeptos de alguns cultos religiosos também terão de dar um
jeito de adaptar os rituais em terreiro brasileiro.
"Duro vai ser explicar isso para Exu, Zé Pilintra, Pomba-Gira e outras
entidades de esquerda que fazem uso da bebida em cerimônias religiosas",
escreve-nos o internauta Ricardo Aguiar, 42, de Brasília.
Aguiar diz ter sentindo na pele a intolerância das autoridades. "Há 10
anos, repito o mesmo ritual: vou para o terreiro, incorporo minha
entidade, que toma uma ou duas doses de cachaça, dá sua ajuda e vai
embora. Nunca tinha tido problemas".
Na madrugada da última sexta-feira, entretanto, o médium voltava da
tradicional cerimônia quando foi abordado por um policial. Ainda vestido a
caráter, capa preta e chapéu – "estava muito cansado para trocar de roupa
àquela hora" –, recebeu da autoridade a ordem de apresentar a carteira de
motorista, documento do carro e "certo olhar de través".
"Ele me perguntou se eu estava fantasiado de mágico". Surpreendido com o
que chamou de desrespeito, Aguiar diz que ainda tentou explicar. "Relatei
que não tinha tido tempo para tirar a roupa do trabalho. O policial
retrucou com ironia: e você trabalha onde, no circo?'. Fiquei chocado".
É, parece que o santo do guarda não bateu com o do Aguiar. "Com a
provocação do policial, senti uma vibração diferente. Minha entidade já
estava ali, pronta pra baixar a qualquer momento. Respirei fundo e tentei
remediar: 'não, senhor, trabalho numa casa espiritual. E não estou
querendo ensinar o seu trabalho, mas seu comportamento pode configurar
preconceito religioso'. Disse e citei um trecho da Constituição Federal,
que já trago na ponta da língua para essas ocasiões: 'A Constituição
Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião,
prescrevendo que o Brasil é um país laico. Com essa afirmação queremos
dizer que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deve se
preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo".
Pode ser que o policial tenha achado a decoreba constitucional do Aguiar
além da conta, pois teve a idéia de perguntar: "Você, por acaso, bebeu?".
O médium corrigiu: "eu não, meu Exu bebeu".
O policial sacou o rádio, pediu reforço, o bafômetro e completou:
"Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de
trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de
dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia,
exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou
científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar
seu estado".
Os dois cruzaram olhares de guerra. Seguiu-se, então, a seguinte
discussão:
Aguiar: "não há nenhum artigo na nova legislação que proíba entidade
espiritual de beber".
PM: "não há nenhum artigo que autorize entidade espiritual beber. Reze pra
sua levar o álcool todo pro além, caso contrário você está encrencado".
Quando o coronel da PM trouxe o bafômetro, Aguiar concordou em assoprá-lo. Deu lá coisa de 0,1 decigramas, um a menos que o permitido por Lei.
Inconformado, o policial chacoalhou o bafômetro, reclamou de um possível
defeito e pediu que o suspeito assoprasse novamente. Já com cara
esquisita, o médium deu uma baforada mais profunda que sujeito que pratica
apnéia. "Os números do bafômetro foram crescendo, segundo a segundo, como num cronômetro. Já não era eu", relata Aguiar.
Espantado e pressentindo estar diante do sobrenatural, o policial recorreu
ao superior. "Não disse? Veja só, ele está bêbado!"
"Bêbado o quê?", disse Aguiar, que já tinha deixado de ser Aguiar até na
voz. O policial ficou arrepiado. "Quem bebe aqui sou eu, não meu
'aparelho'. Deixa a gente ir embora, caso contrário o bicho vai pegar pro
seu lado".
O policial era teimoso. "Só faltava essa. Agora basta fingir que está
incorporado para fugir da Lei. Já pensou se a moda pega? O que vai ter de
Exu e Pomba-Gira saindo de balada não vai ser fácil".
"Exu Tranca Rua", saiu da boca do médium. "Seu coronel, seu funcionário é
mesmo muito competente. Podia até ganhar uma promoção. Nas noites que o senhor está de plantão, ele faz uma retaguarda lá sua casa, juntinho de
sua esposa".
O policial queria dizer que era mentira do Exu, intriga, mas a palidez do
rosto serviu como confissão. "Não é o que o senhor está pensando..."
"Pois é sim", continuou a entidade. "Depois dizem que eu é que tenho
chifre. Se o senhor pudesse ver o tamanho do seu".
Quando o Aguiar voltou totalmente a si, encontrou um festival de socos e
palavrões. "Eu, que não tinha nada a ver com aquilo, fui embora. Mas,
enquanto a legislação não prevê exceção para as entidades, reproduzo a
recomendação dos mentores espirituais: se incorporar e beber não dirija".
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Exu na lei seca
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Blog do Xulinho 2008
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